Há muitas razões para definir a qualidade de trabalho feito pelo Rogério Ceni à frente do Fortaleza. Essa trajetória se estende pelo terceiro ano seguido, com uma curta interrupção, mas incapaz de quebrar a solidez do desempenho dentro de campo. O sucesso de 2019 torna essa temporada ainda mais exigente para o time manter o nível de resultados e conquistas. A paralisação de quase quatro meses poderia trazer consequências financeiras e técnicas quando o futebol retornasse, mas não há contraprovas, neste momento, para invalidar os efeitos de Ceni nas atuações do Fortaleza. Em 2019 e 2020, são três empates, quatro vitórias do Fortaleza e uma derrota para o Ceará.
O clássico foi mais uma demonstração dessa continuidade, outra prova da consistência no trabalho realizado dentro de campo. Não apenas pela vitória, liderança cravada e vantagem de jogar pelo empate nas semifinais, mas pela forma como foi construída. Mesmo ainda não estando na melhor forma física, teve amplo domínio sobre as ações ofensivas do Ceará. Mesmo quando, nos 15 minutos iniciais, sofreu com a marcação pressão e sem continuidade na troca de passes, mantendo a organização na marcação e anulando qualquer tentativa de perigo que o Ceará buscasse.
O Tom Tático separou cinco momentos importantes que ajudaram o Fortaleza a vencer o segundo Clássico do ano, o primeiro nessa retomada de calendário, investindo em um repertório de jogadas ofensivas que proporcionaram o controle do jogo na construção do resultado, derrubando a invencibilidade alvinegra, aumentando o aproveitamento do garoto Yuri César e expondo ainda mais a nitidez no trabalho de Rogério Ceni.
1. Marcação ajustada
A principal característica do Fortaleza é jogar com “goleiro-linha”, é onde o time ‘mapeia’ o jogo e busca a melhor forma de iniciar o ataque, característica base de Ceni. O torcedor vai lembrar do primeiro clássico na Série A de 2019, quando Enderson Moreira, técnico do Ceará utilizou o modelo de marcação pressão para interromper esse início de ataque. A estratégia foi eficiente e o alvinegro abriu 2 a 0 com 17 minutos de jogo, administrou e venceu por 2 a 1. Guto Ferreira ousou na mesma estratégia pelos 15 minutos iniciais e obrigou o tricolor errar o passe por sete vezes na tentativa de buscar o ataque, proporcionando alguns contra-ataques do Ceará, mas neutralizados pelo sistema defensivo montado dentro de campo. Em um desses flagrantes momentos em que o Fortaleza ficou sem alternativas de passe, fica nítido o avanço com seis jogadores para fazer marcação e recuperar essa bola no ataque, o tricolor apenas com cinco, incluindo Felipe Alves, sendo obrigado a se desfazer da posse de bola.

Fortaleza contra o Ceará — Foto: Arte Esporte
O Fortaleza é montado para ter vocação ofensiva e foi assim naquele primeiro Clássico, em nenhum momento baixou a marcação para evitar o sufoco do adversário. Rogério também melhorou o ajuste defensivo, o tricolor conservou mais nesse poder de recuperação e praticamente não foi ameaçado no período que o Ceará buscou ter o controle do jogo. Os laterais ocuparam a linha no meio de campo para ganhar alternativa de passe usando as velocidades do Yuri César e David. Neutralizando o ataque do Ceará, usando variações na saída e o desgaste físico em marcar no campo de defesa que fizeram o Fortaleza dominar o jogo com maior eficiência.
2. ‘Quebra’ dos laterais
Guto Ferreira ainda está iniciando trabalho e buscando as melhores alternativas. A primeira aposta em modelo de jogo é utilizar dois meias, Felipe Silva e Vinícius, como principais articulares na movimentação dentro de campo, além do auxílio em velocidade do Lima com a distribuição ofensiva de Rafael Sobis. Mas, para essa estratégia funcionar, é preciso apoio incondicional dos laterais, sem isso, Vinícius vira apenas um segundo atacante isolado ou um “dez” solitário, Felipe se transforma em ponta, mas sem a característica de profundidade. Lima fica sem alternativas e o Sobis ‘rodando em círculos’. Ceni ‘quebrou’ o modelo de Guto com os pontas Yuri César, David e a movimentação de Romarinho.
Samuel Xavier e Bruno Pacheco não atacaram com frequência, justamente pela dificuldade na recomposição para acompanhar os ataques ou contra-ataques do Fortaleza. Às vezes de jogadas perdidas no setor ofensivo ou lançamentos do goleiro Felipe Alves para que Carlinhos ‘raspasse’ na bola de cabeça acionando os pontas de velocidade. A neutralização nas subidas dos laterais do Ceará fizeram com que o tricolor não fosse ameaçado e principalmente, para que tivesse controle do jogo.
3. Romarinho
Desde ano passado vem sendo uma das principais referências técnicas do Fortaleza dentro de campo. Começou como ponta, mas cresceu de produção atuando com mais liberdade de posição. Justamente por isso, durante o jogo, consegue ocupar todas as faixas dentro de campo, sendo o forte condutor no ataque do Fortaleza e pelo trabalho de recomposição na marcação. Além dos laterais, o Ceará utiliza com frequência a transição dos volantes, com Charles e, principalmente, Ricardinho pela qualidade no passe.
Mas a presença do Romarinho mudou os planos dos volantes alvinegros que passaram a ficar mais estáticos no sistema defensivo. Em alguns momentos, o atacante tricolor teve liberdade no meio para armar o Fortaleza e abrir os espaços para avanços dos laterais e os atacantes de velocidade. Isso obrigou Vinícius e Felipe Silva a buscarem o jogo no meio, quebrando a engrenagem do Ceará. A característica de driblador do Romarinho, usando a velocidade para ganhar vantagem no um contra um diante do Ricardinho, fez o Ceará perder a transição dos meias e viu a necessidade de recuar os homens de frente para iniciar as jogadas.
4. Laterais ofensivos
Se o Fortaleza utiliza a velocidade dos pontas, ele precisa da armação nas laterais. Carlinhos e Tinga são fundamentais no modelo de jogo do Ceni. Jogadores com características de meias atuando pelos lados. Quando Fortaleza inicia as jogadas de ataque com goleiro, os alas tricolores já se posicionam na linha que divide o meio campo, para auxiliar Felipe e Juninho ou para acelerar o ataque tricolor, dividindo a bola pelo alto nos lançamentos feitos por Felipe Alves, abrindo espaços e criando oportunidade nos avanços do Yuri César e David. O que obrigou, também, o recuo dos laterais do Ceará.

Fortaleza, Ceará — Foto: Arte Esporte
Em três passes, o Fortaleza já estava próximo à grande área do Ceará, que optou por tentar se posicionar defensivamente. Carlinhos, pela ótima impulsão na dividida pelo alto gerou várias jogadas de ataque, primeiro auxiliando Yuri César, depois, David. Do lado direito da mesma forma, utilizando Tinga e, no segundo tempo, Gabriel Dias. O tricolor utilizou duas estratégias e variações para limitar as subidas de Samuel Xavier e Bruno Pacheco, com os laterais e principalmente, com os jogadores de velocidade.
5. Entrosamento
Apesar do início de jogo complicado e o controle defensivo do Fortaleza, o Ceará se comportou de forma organizada nos ataques do Fortaleza. Tinga e Carlinhos, Yuri César e David tiveram poucas oportunidades de entrar na grande área ou chegar a linha de fundo com eficiência devido à boa marcação ajustada pelo alvinegro. Então passou usar variações e repertório ofensivo. Utilizando os lançamentos para divididas dos laterais, jogando com o meio, usando Romarinho como driblador para dar liberdade de armação com Juninho ou utilizar Felipe como elemento surpresa onde quase marcou um gol no início do segundo tempo.
Mas a principal alternativa utilizada pelo Fortaleza foi a bola aérea nas cobranças de escanteio. O encarregado foi Juninho, fazendo cobranças “venenosas” na primeira trave para gerar jogadas de perigo e foi dessa forma que o tricolor encontrou arma letal para construir o placar de vitória. No primeiro, Wellington Paulista com oportunismo e na segunda, o garoto Yuri César, aumentando as estatísticas dentro de campo: quatro gols em quatro jogos. Evidenciando o poder de entrosamento do time no ataque e na construção dos gols.
Não é um Fortaleza ideal, por questões físicas e na busca por reforços para qualificar o elenco. Mas é um reinício com ritmo promissor de crescimento, mostrando evolução nas adaptações no campo de jogo, ousando em jogadas diferentes e alternando vários esquemas táticos. Não é apenas um time que atua com quatro atacantes, longe disso, é um time que ousa na sua formação, na identidade ofensiva. O tal do 4-2-4 é apenas mais uma variação do enorme repertório criativo de Rogério Ceni, aquele que tem cada vez mais razões para comprovar a sua eficiência como treinador, principalmente, como líder e alguém que cuida dos novos capítulos na história do clube.